Ana Paula Tavares, Vencedora do Prémio Camões 2025 - «[Este prémio é uma consagração] da minha identidade como mulher africana […]»

Ana Paula Tavares, Vencedora do Prémio Camões 2025 - «[Este prémio é uma consagração] da minha identidade como mulher africana […]»

Escritora, poeta, historiadora e antropóloga, Ana Paula Tavares é o nome prestigiado com o Prémio Camões 2025, máximo galardão literário da língua portuguesa. Com uma trajetória marcada pela escavação da identidade, da memória e da condição feminina no seu país, Angola, e no continente africano, Ana Paula Tavares posiciona a sua voz como uma ponte entre Angola, África e o mundo lusófono. Na entrevista à Villas&Golfe, revela, também, a mulher por detrás dos versos.

O prémio Camões é o reconhecimento máximo da língua portuguesa. O que significa para si receber esta distinção? 
Um grande contentamento. A lembrança do compromisso com a palavra. A possibilidade da poesia.

A sua obra é uma viagem pela memória, pela terra e pelo corpo. Sente que este prémio é também uma consagração da sua identidade, a da mulher africana? 
Sim. Da minha identidade como mulher africana e um tributo a todas as vozes que deram corpo ao desafio do poema.

Angola habita os seus poemas como uma respiração. Que Angola mora em si? 
A terra de nascimento, o aprendizado de uma fala que não teria se tivesse nascido noutro lugar.

Ao longo de cinco décadas, o país transformou-se profundamente. Como lê hoje o percurso da Angola independente? 
Com uma profunda tristeza. Acreditava que começar de novo, uma absoluta necessidade, seria a vez daqueles que não tinham voz em tempo colonial, o fim da injustiça, a escola para todos, os cuidados que a cidadania requeria. Celebro a data e choro os dias e as noites daqueles que têm fome, estão doentes, têm os filhos fora do sistema escolar. Conheço as mulheres que lutam e não desistem. Com elas estou para resistir.

A palavra foi, em muitos momentos, o primeiro território livre. Que papel tem a literatura e especialmente a poesia na afirmação da sua identidade? 
Descobrir nas palavras dos outros que se podia dizer Angola de forma diferente daquela que os livros da escola anunciavam foi um rito de passagem que marcou todo o meu caminho. A literatura veio antes da guerra e obrigou-nos a tomar partido, escolher um lado, olhar o futuro de frente deixar que a consciência nacional tomasse corpo na existência do nosso próprio corpo e da vida.

«Celebro [os 50 anos da Independência de Angola] e choro os dias e as noites daqueles que têm fome, estão doentes, têm os filhos fora do sistema escolar.»

Como nasceu o gosto pela escrita, particularmente pela poesia? 
A escrita desde que aprendi a ler e a escrever. O gosto da leitura fixou-se com as primeiras histórias da coleção formiga, livrinhos que podíamos comprar e ajudaram a descascar os primeiros sonhos. Da leitura à escrita um salto: pequenas peças de teatro para serem representadas na rua, redações para comover os professores, o silêncio da escrita como forma de sobreviver. A poesia veio depois como tentativa de dominar pelo verso todo o mundo à volta que era cantado e cuja chave de decifração eu não possuía.

O júri do prémio Camões falou no «resgate da dignidade da poesia» na sua obra. O que é, para si, a dignidade da poesia? 
A poesia e dignidade são sinónimas. Foi pela poesia e pela música que os mais antigos povos nos deixaram a sua visão do mundo. A história da humanidade antes da escrita deve ao rigor da poesia o facto de se ter salvo do esquecimento e de ainda hoje ser motivo de deleite e celebração.

O processo criativo é, muitas vezes, um lugar secreto. Como nasce um poema em si? 
Na rua, nos cafés, a meio da noite, num sobressalto. Aí nasce. Depois fica arrumado muito tempo até ao poema final.

Há sempre uma presença do sagrado, do feminino e da natureza na sua escrita. São dimensões espirituais? 
É, se quisermos uma leitura do sagrado, uma visita ao sagrado por olhos heréticos e mãos impuras. Há mistérios que carregarei para sempre sem os poderes resolver, outros oferecem-me a face como oferenda. Depois é só tecer.

«Descobrir nas palavras dos outros que se podia dizer Angola de forma diferente daquela que os livros da escola anunciavam foi um rito de passagem que marcou todo o meu caminho.»

A literatura é também uma herança. Que legado gostaria de deixar às novas gerações?
O compromisso com a leitura, o prazer da poesia e a ideia de que nada está garantido. Há que continuar a resistir pela verdade e justiça.

A poesia é muitas vezes uma forma de resistência e amor. O que gostaria que o leitor sentisse ao ler o seu nome nas páginas da história da língua portuguesa? 
Se tiver leitores já fico contente. Não posso orientar para o sentir. Cada leitura é sempre coisa nova.

50 anos depois da independência, que Angola imagina para os próximos cinquenta? 
Imaginar, não imagino. Querer queria: uma Angola mais justa sobretudo para as crianças e para as mulheres.

Se pudesse escrever um poema para Angola neste momento simbólico, qual seria o seu primeiro verso? 
Viva Angola!

Vive atualmente em Lisboa, mas carrega Angola na Alma. Como se sente entre estas duas geografias? 
Habito aqui com o peso da terra. Sou daquele lugar e para a escrita é sempre de lá que falo.

Portugal e Angola partilham uma língua, mas também feridas e afetos. Sente que literatura tem ajudado a curar e a repensar essa relação histórica? 
A literatura começou todos os processos de libertação dos dois territórios. Era preciso que se lessem um ao outro. Que os livros (em qualquer formato circulassem entre geografias, que o conhecimento da história (nos dois lados) obedecesse a uma mentalidade descolonizada e livre. Ainda não aconteceu.

Lisboa é hoje uma cidade de muitas Áfricas. Que pulsar descobre na Lisboa que habita?
De muitas Áfricas e outras geografias. Há que entender as falas, guardar as memórias e apagar os fogos antigos que impedem novas leituras do passado.

Se tivesse de definir a poesia em 3 palavras quais escolheria e porquê? 
Trabalho, leitura, concisão.

Qual é o poema da sua vida? 
Cantares de Salomão, Cântico dos Cânticos5:10-16. Um Excerto: eu sou do meu amado/ e o meu amado é meu.

«Habito aqui com o peso da terra. Sou daquele lugar e para a escrita é sempre de lá que falo.»

 
Texto: Carla Martins
Fotos: Ozias Filho

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