Entre Luanda e Malanje - A essência de uma terra e de um povo

Entre Luanda e Malanje - A essência de uma terra e de um povo

Dizem que estamos desligados, que a sociedade contemporânea vive ou no passado ou no futuro, que em nós há pouco ‘presente’. O perímetro do lar é confortável, o percurso rotineiro até ao trabalho é seguro. Em piloto automático, assim se vive a vida, enquanto a rotina castradora vai criando uma penumbra que não permite ver além do palpável. Mas o ciclo pode ser quebrado. Viajar expande a mente, acaba com a alteridade que há milénios se faz sentir. Permite-nos conhecer os nossos semelhantes, em corpo, e asingularidade existente, em tradições e costumes. E foi o que a V&Gs e propôs fazer. Há poucos momentos como os que estão prestes a ser descritos nas próximas linhas, que, no seu conjunto, culminam numa viagem de despertar de sentidos, onde a única certeza é a de que tudo está ligado neste planeta. São, ao todo,quatro dias de roteiro por savanas, planícies e escarpas pedregosas, que permitirão conhecer parte do interior profundo de Angola. 


São cinco em ponto, o sol ainda se esconde, e estamos em Angola, de frente para a Baía de Luanda. Com a água na mochila e a objetiva ao peito, partimos ao volante de um Land Rover. A terra laranja acompanha-nos todo o caminho, assim como a vegetação que, curiosa, se alonga até à estrada. Entretanto, gente que começa mais um dia. São agora seis da manhã e o movimento prova que o povo angolano é, de facto, madrugador. As mulheres equilibram os cestos na cabeça, muitasdelas encarregues de distribuir o pão da manhã, enquanto as crianças se esgueiram para a borda da via para cumprimentar quem passa. Os camiões percorrem as travessias planeadas para o dia,responsáveis por levarindústria e serviços a Angola. De dentro do carro sentem-se os desvios causados pelas imperfeições do trajeto, que causam posições inconstantes dentro do carro. Ora pernas para a direita, ora pernas para a esquerda, ao ritmo da música que passa na rádio, como sefosse uma confirmação de que tudo está como deveria. A vegetação vai-se mostrando mais esguia e verde, à medida que nos aproximamos de Malanje, o primeiro destino do roteiro. Embondeiros são em maior número e, nas bermas,as cabras repousam sob as sombras teatrais das árvores. Por segundos, o olhar fixa-se numa criança sentada numa banca de fruta, num dos mercados colocados ao improviso, onde se conhecem os produtos frescos da manhã, desde frutas a peixes acabados de pescar. É, então, que começam a surgir asaldeias, umas a seguir às outras, e se avistam as meninas de tenra idade a aprenderem o equilíbrio mestre da cabeça, junto das mães. 

 

Quedas de Kalandula, Malanje


Após quase 500 quilómetros, cortamos numa estrada que obriga a ziguezaguear por entre restos de alcatrão, buracos e terra batida, e chegamos às Quedas de Kalandula. Decidimos pernoitar ao pé desta maravilha natural, na Pousada das Quedas de Kalandula. Ao sair do carro, somos recebidos pelos salpicos que o vento traz.Inacreditável como aágua das cataratas já se faz sentir e ainda nem asavistamos. Pousamos as malas e conhecemos o espaço. Do quarto fica-nos a imponente imagem dos 105 metros de altura das quedas, cenário que parece entrar pela divisão adentro. A decoração é simples e leve, focada em atribuir realce ao que se encontra para lá da varanda. Com todas as comodidades necessárias, a estrutura reúne uma história de altos e baixos. Construídanos anos 50, no período colonial português, esteve abandonada por décadas devido à guerra civil angolana. As quedas ficaram sem hotelaria de apoio durante anos, até que o empresário Francisco Faísca quis apostar na reabilitação da pousada, que ainda envolveu a recuperação de 500 hectares para produção agrícola. Hoje, o seu exterior dedica-se à produção de soja, mandioca, milho e cereais, e o interior reúne 37 quartos, restaurante, bar e espaços de convívio. Como ela há poucas, até porque não é em qualquer lugarque se acorda de frente para as segundas maiores quedas do continente africano.O dia vai a meio e as cigarras já se ouvem. Está planeada uma atividade que ocupará o resto do dia: os trilhos deKalandula, na companhia dos guias Emanuel e Mateus. De bastões de madeira nas mãos, desbravamos caminho em direção aos melhores miradouros das cataratas. Vemos, ouvimos e sentimos. Pelos trilhos acima há um mundo diferente, puro e selvagem. Para os que vivem presos na cidade, é difícil acreditar que esta terra pertence ao mesmo planeta. Sujámo-nos com o que é natural, entre lama e água, e à medida que calcorreamoscaminho a conversa desenrola-se. Mateus conta fazer aquele percurso todos os dias até ao trabalho, já que o dever de sustentar os seis filhos o chama. Por outro lado, Emanuel aguarda a chegada do primeiro filho e nesta etapa já se prepara para a fase do alambamento. Nunca mais esqueceremos a palavra, quando o guia nos revela ser uma cerimónia de casamento tradicional, em que primeiro as famílias do casal se conhecem, depois marcam a data do casamento e, por último, são realizadas trocas, em que o noivo tem de dar bens e produtos à família da noiva, desde peixe seco a bebidas e objetos. «Mas o casal não vai logo viver junto», diz-nos Emanuel, continuando, «a enamorada vai para a casa das tias para aprender a ser mulher». Ao longo do tempo, ficamos a conhecê-lo melhor, admitindo ter esperança de voltar a estudar, uma vez que só reúne escolaridade até à 9.ª classe. Com ele, aprendemos a identificar as árvores predominantes da zona e, no dia seguinte, fica de voltar para nos mostrar a aldeia onde vive. Maravilhados com as paisagens naturais, regressamos à pousada. Surpreendidos ficamos com os pirilampos, ou melhor, ostetembua, como aqui se chamam. Na cidade faz tempo que não se avistam e basta olhar para o céu reluzente para entender que a poluição não anda por terras próximas.«O ser mais perigoso é o homem», diz Emanuel, em jeito de divagação, e despede-se. O jantar é servido de frente para as quedas, com opções para todos os palatos, e no quarto adormecemos ao som da força da natureza.

 

Aldeia da Meia, Malanje


O dia começa cedo. Bebemos um sumo natural de gajaja e partimos. O guia acompanha-nos até à Aldeia da Meia. Até lá, passamos por mulheres a preparar o «bombom» para o funje. Emanuel quebra o silêncio quando exclama Wannanga! (olá), em kimbundu, um dialeto comum da região de Malanje. Caricata a forma como nos prepara para o primeiro contacto com a comunidade. «Sobre a minha aldeia, posso dizer que estamos sem soba. O último morreu faz pouco tempo e não demora até acontecer o novo ritual para escolher o sucessor». Emanuel fala-nos da função de um soba, o chefe de uma aldeia, de como basta roubar um cabrito para se sercandidato a penalizações. Mas o tema não se alonga, porque rapidamentechegamos à aldeia. As crianças correm de um lado para o outro, freneticamente, enquanto outras jogam à garrafinha ou apresentam os melhores movimentos de dança. Quando o carro para, aproximam-se, com curiosidade.Os olhos estão atentos, a aguardar apresentações, mas rapidamente se ambientam. Em minutos, pegam-nos pela mão e mostram-nos a aldeia. As casas de adobe são de tipo único e ao redor delas está o gado. A pouca abundância material é evidenteenem todas as crianças sabem ler ou escrever. Mas desconcertante é a simplicidade de cada uma, os buracos nas camisolas que não as definem, os pés sujos que não as diminuem.Apenas no brincar ao ar livre contam realidades, e isto quando não ajudam as mães nas lides domésticas. Mas nem por isso se mostram tristes, nem por um segundo. As flores, a paz, o rio e o canto das aves são os seus vizinhos e na música, na dança e no amor procuram esperança. Rapidamente percebemos que a Aldeia da Meia é o retrato do interior de Angola, em que a mulher é o pilar dafamília, fonte de alimento, farol de esperança.De espírito indomável, carrega os filhos às costas e a mercadoria à cabeça. Durante o tempo que passamos cá, as caras, as canções e as histórias parecem gravar-se-nosna memória, como um lembrete de que o essencial é, por vezes, invisível ao olhar. Na hora de partir, os olhos de esperança encaram-nos uma última vez, envidraçados e cintilantes, e aí sentimos em cada palavra o que um dia José Saramagoescreveu: «(...) há momentos que parecem ficar suspensos, pairando sobre o fluir inexorável do tempo». Esta é a Angola profunda. O olhar. A alma. O que não se diz, porque se sente de tal forma.

 

Pedras Negras de Pungo Andongo, Malanje


A viagem prossegue. São mais 116 quilómetros até às Pedras Negras de Pungo Andongo. Ao longe, assemelham-se a dedos de gigantes. Situadas no município do Kacuso, as extensas formações rochosas milenares elevam-se acima da savana circundante. Quando nos fazemos perto, percebemos que aquela terra fora de emigrante português, com as casas salmão, típicas do tempo colonial, já deterioradas pela passagem do tempo. «Antes da guerra vivia aqui muita gente, mas depois foram embora e não regressaram»,explica o guia Zé Augusto, que nos acompanha até às pedras monumentais. Pomos pés ao caminho e exploramos morfologia e relevo.Há pedras de todos os nomes e feitios, com histórias diferentes em cada uma. Até existe a pedra mulher, feminina no seu formato e robusta em matéria. Seguimos até ao topo mais alto das Pedras Negras e deparamo-nos com o miradouro Kanzamba, com uma igreja em ruínas do tempo colonial. Em tempos, funcionou como santuário, pelo que passavam aqui pessoas de várias religiões. Da ruína vemos os outros gigantes (as pedras), imponentes, que deixaram plantar entre si casas coloniais. Saboreamos a brisa do alto, quente, leve e confortante, enquanto miramos o Rio Qwanza em diante.
Antes de ir, e como pede a tradição, «falamos» com a Senhora de Pungo Andongo, através de um monte de pedras que insinuam um desejo. Como nós, há crentes e amantes de desejos aqui esculpidos em pedra. A fé que depositamos nisto parece libertar o coração de qualquer anseio. Na volta, passamos pelas supostas pegadas da Rainha Nzinga Mbandi Ngola, esculpidas numa pedra, e deixamos o local.

 

Mangais Golf Resort, Luanda


Em direção à Barra do Kwanza, paramos no Mangais Golf Resort, o último ponto doitinerário. O que sobressai, à primeira vista, é o luxo descontraído que envolve o resort e o campo de golfe, de que oengenheiro Francisco Faísca é proprietário. Por ali passam várias nacionalidades, com vista a desfrutar de um cenário bucólico, que desacelere da azáfama diária. Pernoitamos num bungalow, onde é possível adormecer embalados pela mãe natureza. Na manhã seguinte, refrescamo-nos na piscina e aperfeiçoamos tacadas nocampo de golfe com características de championship course. A acompanhar-nos estão os macacos empoleirados nas árvores e os jacarés que se vão aventurando de lago em lago. A fauna e flora envolventes conferem ao jogo uma experiência autêntica, e ficaríamos mais tempo se não fosse o parapente e o polo a aliciar-nos. Conhecemos primeiro a mais recente novidade dos Mangais: o parapente. Tiago Barreto é o instrutor responsável pelo voo, que faz uso da palavra para acalmar vertiginosos. A descolagem eleva com doses de expectativa e quando já nos encontramos a flutuar no ar percebemos que a vida nos tem escapado por completo. Todos os cantos que pensávamos conhecer são agora perspetivados das alturas, diferentes e curiosos, enquanto avistamos uma diversidade de animais, sobrevoando-os como que num safari aéreo. A aventura é potenciada quando Tiago põe em prática manobras que garantem diversão, com a espiral nível 1, o pêndulo frontal e owingover. Abrigados pelo céu, voamos com as aves, sobre o mar e a vida animal. Os momentos de contemplação vêm acompanhados de explicações por parte do piloto, este que acaba por falar das nuvens e do que elas podem representar no momento do voo. «Estamos a ver uma nuvem muito temida pelos pilotos, a nuvem de formação de chuva, ali ao fundo», diz-nos. Mas, entretanto, o tempo finda e descemos à terra. Voar é, de facto, um sonho, e Tiago concretiza-o.
Por fim, dirigimo-nos até ao Mangais Polo Club. Desta vez, a experiência obriga a ter os pés bem assentes na terra. Estamos no primeiro e único clube de polo de Angola, o local onde amantes de cavalos se encontram para socializar ou para disputar talentos num jogo de sete minutos e meio. O polo é, no fundo, uma modalidade que se joga a cavalo e com quatro jogadores por equipa. O objetivo é atingir uma bola de plástico ou de madeira com um taco longo, de forma a marcar golo contra a equipa adversária. É-nos apresentado o projeto de criação dos cavalos e ainda somos presenteados com uma exibição de saltos de obstáculos, momentos que resultam num dia em cheio, naquela que é uma dasriquezas naturais mais conhecidas da Barra do Kwanza. 
De volta a Luanda, assim se conhece o desfecho de uma viagem de afetos pelas terrasquentes, e, mesmo deixando de a habitar em espaço, Angola continua a habitar-nos em memória. 

Texto: Joana Rebelo
Fotografia: PMC

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