CHEF RICARDO HELTON - «Temos uma ancestralidade poderosa».

CHEF RICARDO HELTON - «Temos uma ancestralidade poderosa».

É uma voz ativa na promoção da culinária angolana, não só no país mas a nível internacional. Ricardo Helton é respeitado pela sua cozinha criativa, que mistura ingredientes tradicionais de Angola com técnicas culinárias contemporâneas. Apaixonado pela cozinha do seu país, a formação de novos talentos na gastronomia é um contributo para o desenvolvimento do setor em Angola, um dos temas sobre os quais conversou com a Villas&Golfe.

Como é que a sua experiência internacional influenciou a forma como encara hoje a gastronomia angolana?
Ter tido a oportunidade de estudar e trabalhar fora de Angola deu-me a possibilidade de crescer e ver o negócio de outra forma, orientado para a eficiência, para o pensamento em equipa. É fundamental trazer conhecimento e ferramentas de gestão para a restauração. Grande parte dos técnicos do ramo tem pouca experiência  ou formação na área e vê a restauração como último reduto para trabalhar. Todavia é importante motivar e formar os trabalhadores desse sector. Sou um firme crente de que a formação pode transformar a excelência no sector da restauração. Entendo que é por intermédio da mesma que iremos conseguir estar ao nível das grandes referências mundiais em termos gastronômicos.

Tendo em conta o potencial agrícola de Angola, o que considera essencial para promover uma maior integração entre o agronegócio e a alta gastronomia no país?
Penso que ainda é cedo para se falar em alta gastronomia no nosso país. Temos um longo caminho a percorrer, e o que pode potenciar ainda mais esse futuro alto padrão que pretendemos é a valorização das nossas origens e a produção nacional. Este tem de ser o caminho, e a agricultura é uma ferramenta extremamente importante para potenciar este caminho. Hoje temos produtos nacionais de excelência. Grandes indústrias têm feito um trabalho incrível nesse domínio mas isso ainda não chega a todos os restaurantes e ainda existe, infelizmente, escassez de stock de alguns produtos. Porém é preciso continuar a dinamizar a cadeia de valor com estímulos, começar do lado  do pequeno agricultor, dar a possiblidade aos mesmos de aceder ao mercado de abastecimento, explicar a valência de pagar impostos e de estarem organizados, e assim caminharem para o o crescimento sustentável de produtos nacionais de maior qualidade.
Estaremos certamente assim a construir uma cadeia de restauração mais próspera.

«Sou um firme crente de que a formação pode transformar a excelência no sector da restauração.»

O risotto de tortulho foi destaque no livro da Organização Mundial do Turismo sobre gastronomia africana. Como descobriu este ingrediente e qual a sua importância no contexto da alimentação em Angola?
Ter tido a oportunidade de representar Angola na OMT foi maravilhoso. O tortulho é um cogumelo que usa a velha técnica da secagem de alimentos e segundo a nossa tradição era usado quando as populações faziam longas travessias, pois mantinha-se sempre conservado.
Cresci a comer tortulho com a minha avó, frito, em escabeche, no funge etc... É dos meus ingredientes locais preferidos e na minha visão elevar Angola será sempre com receitas de inspiração internacional porém com ingredientes locais.

Enquanto formador e mentor de jovens cozinheiros, como transmite a importância do uso de produtos locais e sazonais na construção de uma cozinha mais sustentável?
Eu amo a gastronomia Angolana, é rica, temos uma ancestralidade poderosa. Os novos cozinheiros angolanos deveriam estar mais ligados ao passado para se contruir um futuro sólido. Na minha perspectiva a cozinha angolana sempre foi morosa, nasce do refogado, de horas de cozedura de feijão envolto na suavidade do óleo de palma, de ver a transformação da kizaca. É preciso pensar para além do sabor: temos de estar conscientes que a nossa culinária é uma forma de expressão cultural, a culinária é uma arte viva. E é ao combinar ingredientes, técnicas e a nossa tradição como um croquete de carne seca, ou uma empada de calulu que podermos criar um culinária de fusão, sustentável com recursos aos nossos ingredientes locais.

Que papel pode ter a gastronomia de assinatura, como a que desenvolve no KURAH, na valorização dos produtos angolanos e no estímulo à produção local?
Temos uma responsabilidade muito grande enquanto primeiro restaurante de autor do País, valorizar os produtos locais é a nossa prioridade. Felizmente, com a excelente decisão do Executivo sobre a dinamização do turismo por intermédio da livre entrada de mais nacionalidades sem necessidade de visto, temos recebido clientes de várias latitudes e poder servir um simples caldo verde com gimboa e chouriço nacional como entrada, ou um mil folhas (receita de inspiração francesa) sobreposto com creme de quitaba obriga-nos a estimular e fundir produtos locais em todas as receitas que apresentamos no restaurante. Posso assim juntar combinações inovadoras de sabores e apresentações que utilizam a nossa cozinha tradicional e técnicas modernas.

«Os novos cozinheiros angolanos deveriam estar mais ligados ao passado para se construir um futuro sólido.»

Na sua opinião, quais são os principais desafios que Angola ainda enfrenta para tornar o seu sistema alimentar mais sustentável e integrado com a realidade económica e cultural do país?
Temos uma alimentação rica, temos terras férteis e irrigadas e capazes de produzir os melhores ingredientes. Há muitos anos que as comunidades alimentam as suas famílias à base de fubá, tomate e ervas. Cabe a todos nós transformar e elevar os nossos produtos nacionais, dar ao peixe seco a mesma dignidade que tem por exemplo o bacalhau. Todos são valiosos para um sistema integrado mais sustentável. Temos é que também ter a consciência que é um processo paulatino que envolve a melhoria das colheitas, a melhoria das condições de  armazenamento, a elevação e organização  dos pequenos produtores, o uso adequado das redes de distribuição e apresentação dos produtos com os padrões internacionais de consumo. De outra forma como poderá um turista levar um kilo de fubá, se o mesmo não tem na embalagem os competentes/ingredientes do produto como tem num pacote de maisena?
Temos de nos orgulhar de valorizar os produtos locais já descobertos e dar aos mesmos a visibilidade que merecem.

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