Foi só quase em adulto, e já depois da partida do avô, que Joan Punyet Miró, o neto, percebeu, verdadeiramente, que todos aqueles quadros, cheios de traços, cores e formas, tinham marcado o mundo para sempre. Joan Miró era um afamado pintor, escultor e ceramista. O neto sabia-o. Mas a aura de proximidade familiar sobrepôs-se à notoriedade de uma profissão que, em pequeno, pouco entendia. Embora, como explicou à Villas&Golfe, sempre tivesse tido noção de que o seu avô era diferente dos outros. «É claro que quando se vive num ambiente artístico não se repara em certos detalhes». Mas, alguns desses pormenores, a que na altura não prestou atenção, ficaram afinal gravados na sua memória. E foi com eles que conseguiu completar uma das maiores telas pintadas por Joan Miró, a da admiração de um neto pelo seu avô.
Diz o ditado que aquilo que é verdadeiramente importante uma pessoa não esquece. Por isso, Joan Punyet Miró recorda, da sua juventude, com mais naturalidade, o avô do que o artista. Dessas imagens fazem parte «os encontros familiares e os almoços de domingo, algumas tardes no terraço da sua casa a merendar ou a celebração de algum aniversário e Festas de Natal». Foi de um desses momentos que retirou uma imagem que nunca lhe saiu da cabeça. «Um dia, almoçava na casa dos meus avós e fui incapaz de deixar de observá-lo. Estava compenetrado a examinar um osso de frango que tinha retirado do prato. Para minha surpresa, limpou-o e guardou-o no bolso. Para um rapaz de dez anos, era uma imagem muito estranha. Anos depois, descobri que aquele osso tinha sido utilizado para a realização da escultura Chien Oiseau, de 1981».
«O que mais me impressionou foi a enorme quantidade de telas em branco que tinha preparadas para trabalhar no futuro»
Hoje, sabe também que houve, afinal, instantes, em que viu o avô e o artista fundidos no mesmo homem. Uma tomada de consciência que foi acontecendo aos poucos, como quando lhe foi permitida a entrada num espaço que até então esteve serenamente guardado. Um momento de tal maneira marcante que até a data merece ser destacada. Foi no dia 20 de abril de 1978, quando Joan Miró completou 85 anos. O neto, Joan Punyet Miró, recebeu permissão para entrar no estúdio do avô, pela primeira vez. Acompanhavam-no a avó, Pilar, e o irmão, Teo. «Foi a única ocasião em que visitei Miró na oficina Sert. Recordo-me de que me fascinou o colorido das suas obras e o odor do seu estúdio. As obras de grande formato encontravam-se longe da entrada e monopolizaram a minha atenção devido ao colorido dos fundos e à contundência do traço. Recordo-me que havia grupos de seis ou oito quadros, de pequeno formato, espalhados pelo chão, em que trabalhava simultaneamente. Tinha de mover-me com cuidado para não tropeçar num quadro ou em alguma das mesas, que transbordavam de garrafas, pincéis e latas de tinta. Sem dúvida, um dos detalhes que mais me impressionou foi a enorme quantidade de telas em branco que tinha preparadas para trabalhar no futuro».
Mas o futuro tem por vezes o pavio curto. Hoje, volvidos 33 anos desde o desaparecimento do artista, o neto continua empenhado em elevar com orgulho um nome incontornável do movimento surrealista. Desde a Successió Miró [uma empresa criada em 1996 para administrar os direitos das obras do artista] juntamente com as fundações de Barcelona e de Palma de Maiorca, que realizam um intenso trabalho de difusão da sua obra através de exposições. «Além disso, entre outras tarefas, estou envolvido na publicação de catálogos detalhados e processos de autenticação. Tudo isto será reforçado com a recém-criada Fundação Mais Miró, em Mont-roig, Tarragona», contou o neto.
«Uma coleção como esta, na minha opinião, deve permanecer unida. Anular a sua venda foi um passo importante para evitar a dispersão das obras»
Por cá, em Portugal, mais propriamente no Porto, ficou resolvida há alguns meses uma questão que tocou temas sensíveis à Nação, como a cultura, a política e o dinheiro. Tudo pesado, ficou a ganhar o país com a Materialidade e Metamorfose de Joan Miró, que passou a figurar na Casa de Serralves. Sobre isso, Joan Punyet Miró demonstrou a sua satisfação com o desfecho da história. «Uma coleção como esta, na minha opinião, deve permanecer unida. Anular a sua venda foi um passo importante para evitar a dispersão das obras, tendo sido o desempenho do Estado português exemplar. Agora, a cidade do Porto, em particular, e todos os portugueses, contam com um importante legado para acrescentar à sua herança cultural». E a importância dessa herança não passa despercebida ao público, que um pouco por todo o mundo exalta os quadros do artista. O segredo, esse, poderá estar em muitos detalhes. Na simplicidade dos traços, nas cores vivas e na mágica pessoa que terá sido Miró. *
* Agradecimento especial ao especialista em arte Miquel Trafach