António
Guterres, secretário-geral da Organização das Nações Unidas, afirma que a
guerra não tem fim à vista. Partilha da mesma opinião?
Putin
só parará quando alguém o parar. Esta é a lógica de ação dos líderes
autoritários. Atacam quando sentem fraqueza. Em 2007, Putin anunciou
oficialmente os seus planos para forçar a restauração do Império Russo. A
Rússia tem vindo a preparar-se para isto durante os últimos anos. Putin julgou
mal quando pensou que poderia tomar posse da Ucrânia em três dias. Não esperava
que as pessoas que lutassem pela sua liberdade pudessem provar ser mais fortes
do que «o segundo exército do mundo». No entanto, a Rússia ainda tem muitos
recursos para continuar a guerra. É por isso que a Ucrânia está à procura de
ajuda militar de vários países, a fim de receber armamento moderno.
O apoio internacional prestado à
Ucrânia tem-se revelado suficiente?
Coloquemos
também a seguinte questão: suficiente ou não suficiente para quê?
A Ucrânia,
para que se possa defender da agressão russa, precisa de ter recursos
proporcionais aos que a Rússia gasta para nos destruir. Segundo o Banco
Mundial, em 2021, o PIB russo representava quase 1,8 triliões de dólares,
enquanto o PIB ucraniano representava 0,2 triliões de dólares. Esta é a 11.ª
economia do mundo. Em 2022, como resultado da agressão russa, a Ucrânia perdeu
aproximadamente 40-45% do seu PIB. Ao mesmo tempo, a perda do PIB russo
correspondeu oficialmente a 4%, enquanto as estimativas ocidentais indicam uma
perda de 8%. A Rússia já adotou o orçamento de guerra de três anos para
2023-2025 e aumentou os impostos. A Rússia espera receber mais 44 mil milhões
de dólares apenas do setor do petróleo e gás. Sem dúvida, estes financiamentos
adicionais serão investidos exclusivamente na guerra.
O mundo tem assistido à realidade nua
e crua da Ucrânia ou apenas conhece a ponta do icebergue?
É
difícil acreditar no que está a acontecer neste momento. As tropas russas estão
a destruir propositadamente edifícios residenciais, igrejas, escolas e
hospitais. Estão a atacar corredores de evacuação, a coordenar um sistema de
campos de filtragem e a organizar deportações forçadas. Estão a raptar, violar,
torturar e assassinar pessoas nos territórios ocupados. Esta política é
consciente. A Rússia usa os crimes de guerra como método de guerra. Está a
tentar romper a resistência das pessoas e a ocupar o país, infligindo imensa
dor aos civis. Estamos a documentar esta dor.
Passaram mais de 300 dias desde que o
conflito Rússia-Ucrânia começou.A esperança do povo
ucraniano tem esmorecido?
As pessoas na Ucrânia desejam a paz,
mais do que qualquer outra pessoa neste mundo. No entanto, a paz não chega
quando o país atacado baixa as suas armas. Nesse caso, não se trata de paz, mas
sim de ocupação. Nesta guerra, estamos a lutar pela liberdade em todos os seus
sentidos. Esta guerra é como um genocídio. Putin afirma abertamente que o povo
ucraniano não existe. No momento em que deixarmos de lutar, deixaremos de
existir.
Num cenário
de destruição, como se explica uma guerra às crianças? E como se tenta
proporcionar uma vida minimamente normal no contexto caótico em que vivem?
Não tenho uma resposta simples a esta
pergunta, mas um episódio recentemente vivido por uma amiga pode servir de
ilustração. Ela saiu de uma loja e viu uma menina, que estava à porta da entrada.
Nesse momento, a sirene de ataque aéreo começou a tocar e a menina começou a
chorar. A sua mãe saiu imediatamente a correr da loja e perguntou-lhe porque
estava a chorar, visto que a deixara apenas por alguns minutos, para lhe
comprar alguns doces. A rapariga respondeu que, quando a sirene de ataque aéreo
começou a tocar, tinha ficado com medo de morrer sem que a sua mãe estivesse junto
dela.
O que significa «vitória» para o povo
ucraniano?
Esta guerra foi desencadeada em
fevereiro de 2014, não em fevereiro de 2022. Nessa altura, a Ucrânia teve uma
oportunidade para uma rápida transformação democrática após o colapso do regime
autoritário. A fim de nos impedir neste caminho, a Rússia ocupou a Crimeia e
algumas partes dos oblasts de Donetsk e Luhansk. Putin não tem medo da
OTAN, Putin tem medo da ideia de liberdade. Esta não é a guerra de dois
Estados, mas a guerra de dois sistemas: o autoritarismo e a democracia. Os
ucranianos acreditam que a vitória significa não só a restauração da ordem
internacional, como também a libertação da Crimeia e de outros territórios
ocupados, bem como a expulsão das tropas russas do nosso país. Os ucranianos
acreditam que a vitória significa a conclusão bem-sucedida da transformação
democrática e a construção do país, onde os direitos humanos de cada pessoa são
protegidos, o governo é responsável, os tribunais são independentes e a polícia
não espanca estudantes em manifestações pacíficas.
Aquando
do discurso na entrega do Nobel da Paz, Oleksandra apelou à criação de
um tribunal internacional que julga os criminosos de guerra. Pode fundamentar
esta necessidade?
Uma
guerra transforma as pessoas em números. Só a justiça pode devolver às pessoas
os seus nomes. É por isso que devemos assegurar justiça para todas as vítimas
de crimes internacionais. Independentemente da sua identidade, do seu estatuto
social, do tipo de crime ou crueldade de que foram vítimas, bem como do
interesse dos meios de comunicação social ou da sociedade. Porque a vida de
cada pessoa tem importância. Enfrentámos o problema da lacuna na
responsabilização. O sistema jurídico ucraniano está sobrecarregado com a
quantidade de processos de crimes de guerra. O Tribunal Penal Internacional
restringe as suas investigações a vários casos selecionados e não tem
jurisdição sobre o crime de agressão em termos da agressão russa contra a
Ucrânia. Consequentemente, devemos criar um tribunal internacional para levar
Putin, Lukashenko e outros criminosos de guerra russos perante a justiça.
«A
guerra impõe a sua própria medição do tempo, espaço e dor humana»