Nos últimos tempos têm sido retiradas passagens potencialmente ofensivas de obras que marcaram gerações. Os desacordos são muitos, entre editoras e escritores, e em última análise está a sensibilidade dos leitores modernos. Haverá limites para a escrita? Emendar livros é considerado censura? A V&G foi tentar perceber junto da escritora Ana Margarida de Carvalho e do professor de Cultura Portuguesa Cândido Martins, da Universidade Católica Portuguesa de Braga.
Revisionismo literário
Entre factos e perspetivas
No livro Charlie e a Fábrica de Chocolate, de Roald Dahl, os «pequenos homens» passaram a «pequenas pessoas» e o adjetivo «preto» foi extinto, por completo, da obra. A protagonista de Agatha Christie, Miss Marple, não encontra mais os nativos, porque agora passaram a denominar-se «locais». O caso de Enid Blyton é também um dos mais recentes, a partir do momento em que as bibliotecas de Devon, Inglaterra, decidiram colocar as versões não revistas dos livros do autor numa área restrita. Revisitando os clássicos, as editoras estão a criar uma lista progressivamente maior de palavras proibidas, que não terão lugar nas novas edições das obras, sendo algumas delas «judeu», «cigano», «feio» e «gordo». As fundações detentoras dos direitos de autor explicam querer adequar os livros às sensibilidades modernas, filtrando-os de passagens potencialmente ofensivas. Mas há quem vá mais longe e esteja a esconder fisicamente determinados livros.
São muitos os escritores que alertam para a criação de uma geração que possa não compreender a literatura, por isso quisemos ouvir a perspetiva do professor Cândido Martins: «Há editoras que se acham no direito de alterar o texto original de obras literárias diversas, expurgando essas criações de passagens pretensamente violentas, amorais ou contrárias ao politicamente correto de hoje. No fundo, querem é editar e vender livros que consideram mais consentâneos com as tendências atuais», declara. O docente acredita que os autores cujas obras não se enquadrem nos parâmetros instituídos são, nos dias que correm, objeto de cancelamento. Mas a autora e jornalista Ana Margarida de Carvalho partilha de uma opinião um tanto diferente: «Há fenómenos de moda, de algum fanatismo, mas que serão passageiros e efémeros, que é a própria definição de moda», afirma. Mas, afinal, existem livros desajustados?
Editoras estão a criar uma lista progressivamente maior de palavras proibidas
São muitos os escritores que alertam para a criação de uma geração que possa não compreender a literatura, por isso quisemos ouvir a perspetiva do professor Cândido Martins: «Há editoras que se acham no direito de alterar o texto original de obras literárias diversas, expurgando essas criações de passagens pretensamente violentas, amorais ou contrárias ao politicamente correto de hoje. No fundo, querem é editar e vender livros que consideram mais consentâneos com as tendências atuais», declara. O docente acredita que os autores cujas obras não se enquadrem nos parâmetros instituídos são, nos dias que correm, objeto de cancelamento. Mas a autora e jornalista Ana Margarida de Carvalho partilha de uma opinião um tanto diferente: «Há fenómenos de moda, de algum fanatismo, mas que serão passageiros e efémeros, que é a própria definição de moda», afirma. Mas, afinal, existem livros desajustados?
Editoras estão a criar uma lista progressivamente maior de palavras proibidas
A escritora considera que sim, argumentando que «não parece adequado expor crianças aos preconceitos raciais ou de género do mundo dos adultos». Continua: «Aliás, desde sempre que tentamos rever as narrativas infantis, que já são por si adaptadas de histórias populares e que chegaram até nós, através dos irmãos Grimm ou por Hans Christian Andersen». Fala que estas histórias eram originalmente sanguinárias, com cenas de pedofilia, violação e canibalismo, a par com a «normalização do racismo ou da desvalorização crónica das mulheres». Não obstante, Ana Margarida de Carvalho admite que para as editoras de orientação mercantilista tudo o que vende é preponderante. Cândido Martins é firme na sua posição. «Não existem obras ou livros "desajustados”; nós é que, definitivamente, não temos o direito de mutilar obras de arte, a partir de um enviesado e anacrónico olhar contemporâneo. Veja-se o caso hilariante (e trágico) da professora americana, alvo de um processo disciplinar por ter mostrado aos seus alunos adolescentes a nudez da escultura da célebre David, de Miguel Ângelo», declara. Quando questionados sobre a existência (ou não) de censura literária, o desacordo entre ambos permaneceu. Ana Margarida de Carvalho fala de uma questão de tendência, pelo que não pode ser comparável, na sua perspetiva, à ditadura que se viveu antes do 25 de Abril. «Hoje, "a ditadura literária” que me preocupa é a ditadura dos mercados. Aquilo que as editoras entendem que não vai vender, simplesmente, é descartado», revela a escritora. Já o professor da Universidade Católica Portuguesa confirma a existência de censura: «Na senda do revisionismo histórico, é claramente uma forma de censura, grosseira e chocante, porque implementada em pleno séc. XXI, quando julgávamos viver numa sociedade aberta e livre, dotada de amadurecido sentido crítico.
«Hoje, "a ditadura literária” que me preocupa é a ditadura dos mercados», Ana Margarida de Carvalho
«Hoje, "a ditadura literária” que me preocupa é a ditadura dos mercados», Ana Margarida de Carvalho
A palavra de ordem é apagar tudo o que, potencialmente, possa ofender as sensibilidades contemporâneas». Num ponto, ambos concordam: o autor deve ser livre de escrever o que lhe vai na alma.
Num tema que daria para rigorosos debates, Cândido de Oliveira Martins revela os seus anseios, garantido que não faltará muito para que a Inteligência Artificial determine o que deve ou não ser publicado e o que poderemos ou não dizer ou pesquisar na Internet. Ana Margarida de Carvalho menciona a evidente preocupação pela lógica do simplismo, da infantilização e da maior acessibilidade por parte de muitos autores.
«Não faltará muito para que a Inteligência Artificial determine o que deve ou não ser publicado», Cândido de Oliveira Martins
Num jeito de conclusão, o docente crê que se age «como se fosse possível viver e conhecer o mundo num aqui e agora (hic et nunc), desprovido de um passado multissecular», insistindo na importância de aprendermos a ler criticamente o mundo à nossa volta. A escritora dá o seu desfecho frisando que vivemos pequenas ditaduras temáticas, «um pouco obsessivas, com prazo de validade, é claro, que aparecem e depois dão lugar a outras…».
Num tema que daria para rigorosos debates, Cândido de Oliveira Martins revela os seus anseios, garantido que não faltará muito para que a Inteligência Artificial determine o que deve ou não ser publicado e o que poderemos ou não dizer ou pesquisar na Internet. Ana Margarida de Carvalho menciona a evidente preocupação pela lógica do simplismo, da infantilização e da maior acessibilidade por parte de muitos autores.
«Não faltará muito para que a Inteligência Artificial determine o que deve ou não ser publicado», Cândido de Oliveira Martins
Num jeito de conclusão, o docente crê que se age «como se fosse possível viver e conhecer o mundo num aqui e agora (hic et nunc), desprovido de um passado multissecular», insistindo na importância de aprendermos a ler criticamente o mundo à nossa volta. A escritora dá o seu desfecho frisando que vivemos pequenas ditaduras temáticas, «um pouco obsessivas, com prazo de validade, é claro, que aparecem e depois dão lugar a outras…».