Em jovem, cantarolava para a sua mãe Fado da Carta, de Fernanda Baptista, e Marco do Correio, de Alberto Ribeiro, mas nunca sonhou ser artista. O que planeava para a sua vida, na altura?
Não faço ideia, como qualquer rapariga daquela altura. Sei lá. Pensava tirar um curso relacionado com línguas, casar sem dramas, por aí... Nunca fui de imaginar muitas coisas. Era muito feliz com o meu pai, a minha mãe e a minha irmã.
Acabou por frequentar o Centro de Preparação de Artistas da Emissora Nacional, o primeiro local em que se deparou, pela primeira vez, com um microfone. Em que altura se deu conta de que faria da música vida?
Entrei no Centro de Preparação de Artistas pouco tempo depois de ter acabado um casamento desastroso, em que apanhava muitas tareias. Na altura, fugi e fui morar para a casa dos meus pais. Por descargo de consciência, o meu pai acabou por me levar ao Centro de Preparação, não com o intuito de me fazer cantora, mas para que passasse três horas por dia ocupada. Confesso que a minha cabeça estava quase a dar a volta, mas, depois, comecei a frequentar aqueles programas da Emissora Nacional, às sextas-feiras, onde cantava a Maria do Espírito Santo e a Alice Amaro, e comecei a integrar-me nesse grupinho. No mesmo ano surge a RTP, que foi à procura de cantoras no Centro de Preparação de Artistas. O primeiro programa que eu faço é na televisão, com um vestido horrível. Daí para a frente, foi uma sequência de trabalhos. Comecei a cantar por ali e por aqui, mas só quando faço a Sol de Inverno, em 1965, e vou representar Portugal a Nápoles, é que percebo que da música faria vida.
Subiu ao palco do Festival da Canção, em 1969, para cantar a Desfolhada Portuguesa. Como é que o público a recebeu?
Deixe-me dizer que a primeira música do Festival da Canção a ser transmitida foi a minha, tendo ficado em 12.º lugar a atuação da Maria da Fé, uma grande fadista que cantou Vento do Norte. Quando ouvi a sua música, logo pensei «está ganho», mas, entretanto, a votação da Desfolhada subiu significativamente, conquistando o primeiro lugar. Confesso que não estava nada à espera de ganhar o festival.
O público recebeu a Desfolhada Portuguesa de forma apoteótica. Passaram-se cerca de 54 anos e ainda estou para perceber o porquê. Na altura, vinha de comboio de Madrid e o comboio começou a parar ao chegar a Lisboa. Questionava-me sobre o que estaria a acontecer. Percebi, pouco tempo depois, que estavam 23 mil pessoas paradas na linha do comboio para me ver. Lembro-me de ver o meu pai lá fora e de ele me abraçar. Chorei muito. Ainda tive de ir ao segundo andar da estação, com um megafone, de janela aberta e banco em cima da mesa, para cantar a Desfolhada. O espantoso é que as pessoas sabiam de cor a canção. Como é que em dois dias a memorizaram? Também me recordo de um senhor de idade, na altura em que eu estava a entrar para o comboio, tirar o boné e dizer: «Ó minha senhora, o que se fez ao nosso país!». A realidade é que se tratava de um problema de país, um problema de raiva, um problema de «quem faz um filho, fá-lo por gosto». Vem, fundamentalmente, dessa frase, que naquele tempo ninguém teria dito.
Em entrevistas, revela que o seu pai nunca lhe elogiou o potencial da voz e que se contam pelos dedos as vezes que assistiu a um dos seus espetáculos. Hoje, percebe o motivo?
Boa pergunta. Não faço a menor ideia. Tenho noção de que ver-me tornar artista foi a última coisa que lhe passou pela cabeça. «Esta filha é completamente maluca», ouvia-o dizer à minha mãe. Eu, de facto, tinha atitudes que ninguém se atrevia a ter, naquela altura. As pessoas casavam, apanhavam e permaneciam em casa, caladas. Eu casei, apanhei e fugi. Se ser casada significava aquilo, eu não queria. Tive, felizmente, um pai e uma mãe que me aceitaram, aliás, eu cheguei a casa deles e disse-lhes: «Eu posso não ficar aqui, convosco, mas nem que eu durma na rua, eu para lá não volto». E eles perceberam que eu não voltava, e não voltei mesmo.
Enquanto o país dormia na penumbra da censura, cantou a pulmões abertos: Quem faz um filho / fá-lo por gosto. Alguma vez teve receio das consequências que poderiam advir de um espírito tão inconformado e interventivo?
Eu sou uma mulher que não tem medo. Nunca me passou pela cabeça que me fariam mal por cantar a verdade.
Um dia, lembro-me de cantar a Sol de Inverno e, de seguida, ter uma conferência de imprensa. Acontece que, durante a sessão, um jornalista italiano pega na letra bandeira vencida / rasgada no chão e me pergunta se aquilo representava a luta perdida contra Salazar. Naquele momento, tinha a delegação portuguesa a olhar para mim, até que eu respondo: «Olhe, deve estar completamente enganado. Nós estamos numa conferência de música e, portanto, eu penso que o senhor deveria ir para uma conferência política, que talvez seja na mesma rua, três portas abaixo». Até hoje não sei como tive lata para dizer aquilo.
«A vida tem-me dado tudo»