Com 14 anos entra no mundo do trabalho,
desistindo dos estudos e abandonando o seminário. Aos 24 foi convocado para
combater na Guerra do Ultramar. Esteve destacado perto de Kyaia, em Angola. É
daí que advém o nome do grupo Kyaia?
Na altura, fui destacado com o pelotão para o
Kyaia e foi daí que surgiu o nome, sim. Naquelas noites em que não tínhamos nada
que nos ocupasse, imaginávamos o que faríamos no futuro. Eu pensava: «Quero
fazer uma fábrica de sapatos». Era a única coisa que via na minha vida.
Já de regresso a Portugal, volta ao ativo.
Embarca na Revolução do 25 de Abril e chega a entrosar-se na vida política,
como candidato do PCP. Percebeu rapidamente que aquela não seria a sua vocação?
25 de abril. Foram tempos gloriosos e muitas
noites sem dormir. Fui candidato do PCP nas primeiras eleições, sim. O meu
primeiro partido era o Partido Socialista só que, na altura, fui à sede do PS e
encontrei-a fechada. Pensei: «Não querem saber da Revolução». Logo depois,
desci a rua e reparei que estava aberta a sede do PCP. E pronto. Prestei-me,
então, a trabalhar na campanha e foi assim que me entrosei na vida política.
Depois dessa campanha, precisava de ganhar dinheiro e, bem, foi assim que se deu
o final da minha atividade política. Estive lá um ano. Comecei a perceber como é
que aquele mundo funcionava e disse para os meus botões: «Afinal, isto não é
para mim». Já tinha sido escuteiro e percebi que aquilo era ainda pior.
Sem saber inglês, já visitou
meio mundo, vende para imensos países e é um dos maiores fabricantes
portugueses de calçado. Cria a Kyaia em 1984 e a marca Fly London surge
dez anos depois. Considera-se visionário?
Não. Considero-me um homem
comum, mas que quer sempre subir na vida. Para se elevar o patamar, tem de haver
força e vontade, caso contrário é impossível.
Quantas empresas tem o grupo?
É constituído por cerca de doze empresas,
diversificando-se por áreas. Temos a fabricação de sapatos em Guimarães, onde
se localiza a sede, e em Paredes de Coura. Depois, temos as lojas. Em tempos,
foram 80. Hoje, à volta de 15. Há meia dúzia de anos, tomei a decisão de
começar a fechar as lojas, é um negócio que nos dá muito prejuízo. E, portanto,
o número de lojas estacionará por aqui.
E quantas pessoas emprega, neste momento?
Cerca de 400 trabalhadores. Não tenho um número
certo porque é tudo muito volátil. Hoje estão, amanhã já não.
Falamos de uma faturação anual em vendas de...
Nós
tivemos algumas alterações. 2014 e 2015 marcaram os momentos altos da Kyaia, a
rondar uma faturação anual de 64 a 65 milhões de euros. Entretanto, começámos a
baixar, e foi isso que me levou, entre 2021 e 2022, a dispensar um sócio que
trabalhava comigo desde os seus 15 anos. Era ele o responsável pela parte
comercial do grupo e, como originou declínio para a empresa, falei com ele.
Disse-lhe: «Não foi para isto que te convidei, dei-te uma quota, mas não foi
para sermos um grupo pequeno. Isto está a caminhar para nos tornarmos o grupo
mais pequeno de calçado em Portugal. Vou arranjar pessoas que te substituam e
tu segues a tua vida». E, pronto, acabou por seguir.
«Estamos (...) a tentar conquistar o mercado
interno»
Qual é o volume de exportação? E qual o maior
mercado?
Neste momento, continuamos entre os 85% a 95%
de volume de exportação. Estamos também a tentar conquistar o mercado interno,
onde chegamos a faturar três milhões de euros. Com a descida global da
faturação do grupo, estamos num milhão e pouco.
O maior mercado é, e sempre foi, o inglês, que
se bate com o americano e canadiano. Num ano corre melhor num; noutro ano corre
melhor noutro, e assim sucessivamente. São mercados que dominam a progressão da
Kyaia. Atualmente, vendemos para 45-50 países, mas no passado chegamos a
atingir os 60 países. A nossa capacidade de produção também é limitada, temos
de ser realistas, porque a falta de mão de obra condiciona significativamente a
produção. Por exemplo, se não tivéssemos um grupo de 21 venezuelanos a
trabalhar em Paredes de Coura, tínhamos a fábrica com problemas de produção.
De que forma é que a inflação tem
afetado o negócio?
Tem dificultado o diálogo entre o
grupo e os clientes. Eles acham que o nosso produto é caro. Nós achamos que é
barato. A verdade é que ou ganhamos para pagar aos nossos trabalhadores ou então
não vale a pena ter a fábrica aberta. Depois, aparecem clientes mais
compreensivos ou menos compreensivos. Não queremos explorar ninguém. Não sou
apologista de aumentar as produções, mas sim de as melhorar. Temos de crescer,
não por meio do aumento da produção, mas sim por acrescentarmos valor. Nem
poluímos tanto o mundo, nem cansamos tanto os trabalhadores, acabando por
valorizar mais o produto. Já por isso nos encontramos presentes em áreas como a
inteligência artificial, o metaverso...
A internacionalização atinge-se por meio da presença
nas feiras e no digital?
O melhor caminho são as feiras. Estamos presentes em
todas, nomeadamente a de Milão. A filosofia também já não é a mesma.
Atualmente, dirigimo-nos para feiras mais pequenas, porque são mais económicas.
Por outro lado, o digital é muito bonito, mas é fundamental que haja uma
ligação pessoal. Em 2018/2019, o grupo lançou a plataforma de venda online
Overcube, para a indústria portuguesa de calçado. A ideia era criar uma pequena
Amazon em Portugal, que representasse a indústria nacional de calçado no mundo.
Comecei o projeto com cerca de 30 informáticos, hoje restam quatro. Porquê?
Meteu-se a pandemia, a guerra e a crise económica. Também ninguém quis
acompanhar o projeto, nem a indústria, que o tomou por demasiado moderno; nem o
próprio Estado, que olhava para aquilo como quem está a mirar uma vaca no meio
de um campo de milho. A conjetura do tecido empresarial português também me
deixou sozinho. Investi e, quando cheguei aos três milhões, parei.
Como promove o pensamento crítico, a inovação
e a sustentabilidade na sua organização?
Bem, os críticos não somos nós, são os nossos
clientes. Eles é que compram. Procuramos sempre acompanhar os seus anseios e
necessidades. Relativamente à sustentabilidade, encontramo-nos presentes em
alguns projetos da indústria para a sustentabilidade. No domínio da inovação, fizemos
uma aposta séria no metaverso. Porquê? Os clientes que, em 1994, faziam fila
para comprar o nosso produto, hoje, já têm mais de 30/40 anos. Portanto, cansaram-se.
Precisamos, pois, de arranjar nova clientela. O comércio enfrenta uma mudança
muito grande. Aqui, em Portugal, tínhamos clientes de sapatarias que ganhavam
imenso dinheiro, mas os próprios filhos quiseram prosseguir outras áreas e,
portanto, esses clientes já quase não existem. Não posso vender sapatos, se mal
existem sapatarias, então, a hipótese foi inserirmo-nos no metaverso, para
atrair os miúdos que hoje têm 10/12 anos. Convencendo-os a jogar os nossos
jogos, moldamo-los à marca, de forma a que, daqui a 20 anos, estejam afeiçoados
à Fly London. É um investimento. Pode ser que daqui a uns anos comecem a
comprar o nosso produto.
Como se apresenta ao mundo a indústria nacional
de calçado?
Como todas as indústrias, tem de lutar pela sua
sobrevivência. E muito. Tecnicamente, a indústria nacional de calçado está bem
desenvolvida, só não tem o valor acrescentado da marca. Por exemplo, se formos
a Felgueiras, veem-se muitas indústrias paradas, porque só trabalham
essencialmente para as grandes marcas, que por sinal estão em crise. Nós,
Kyaia, como temos uma grande autonomia (cerca de 70%), estamos a trabalhar em
pleno. Aliás, vamos agora de férias. Portanto, hoje, a indústria está bem
preparada, o problema reside em não existir o valor acrescentado da marca. A
indústria nacional não tem marcas.
Costuma
andar com calçado Fly London?
Temos
de gostar da namorada para andarmos com ela (risos)! Sim, trago calçado
Fly London.
«Não posso vender sapatos, se mal existem sapatarias»