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· Indústria do Calçado e Setor do Turismo 
· · T. Joana Rebelo · F. André Rolo

Fortunato Frederico

«Ambiciono tornar a Fly London a marca número um em Portugal»

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De sorriso genuíno e traços simpáticos, é assim que se apresenta o generoso Fortunato Frederico, à medida que entra pela sala e se ajeita no seu cadeirão de chefia. Ao seu redor, multiplicam-se as memórias, através das incontáveis fotografias que o tempo não se atreve a roubar-lhe. Filhos. Figuras célebres. Pessoas comuns. Pelo meio quadros sensuais, e outros nem tanto, que permitem criar uma atmosfera inspiradora, até harmoniosa. A história da sua vida está aqui, encaixada simetricamente nas paredes do seu gabinete. E, sem darmos por ela, a conversa começa a fluir. No primeiro minuto é a simplicidade desarmante com que nos fala que prende a atenção. Quiçá seja fruto das raízes humildes, do passado sofrido ou das conquistas que reúne. Ou de tudo um pouco, à mistura. Lançou-se no mundo do trabalho aos 14 anos, sem saber o que o destino lhe reservava. Órfão de pai aos 15 dias de vida e oriundo de uma família modesta, nunca teve nada de mão beijada. Hoje, Fortunato Frederico fala à V&G como fundador do grupo Kyaia, mas também como pai e cidadão. Entre a vida pessoal, a indústria do calçado, o turismo e os projetos sociais, conheça mais sobre o «homem comum», que recusa a reforma e desafia a idade.
Com 14 anos entra no mundo do trabalho, desistindo dos estudos e abandonando o seminário. Aos 24 foi convocado para combater na Guerra do Ultramar. Esteve destacado perto de Kyaia, em Angola. É daí que advém o nome do grupo Kyaia?
Na altura, fui destacado com o pelotão para o Kyaia e foi daí que surgiu o nome, sim. Naquelas noites em que não tínhamos nada que nos ocupasse, imaginávamos o que faríamos no futuro. Eu pensava: «Quero fazer uma fábrica de sapatos». Era a única coisa que via na minha vida.  

Já de regresso a Portugal, volta ao ativo. Embarca na Revolução do 25 de Abril e chega a entrosar-se na vida política, como candidato do PCP. Percebeu rapidamente que aquela não seria a sua vocação?
25 de abril. Foram tempos gloriosos e muitas noites sem dormir. Fui candidato do PCP nas primeiras eleições, sim. O meu primeiro partido era o Partido Socialista só que, na altura, fui à sede do PS e encontrei-a fechada. Pensei: «Não querem saber da Revolução». Logo depois, desci a rua e reparei que estava aberta a sede do PCP. E pronto. Prestei-me, então, a trabalhar na campanha e foi assim que me entrosei na vida política. Depois dessa campanha, precisava de ganhar dinheiro e, bem, foi assim que se deu o final da minha atividade política. Estive lá um ano. Comecei a perceber como é que aquele mundo funcionava e disse para os meus botões: «Afinal, isto não é para mim». Já tinha sido escuteiro e percebi que aquilo era ainda pior.  

Sem saber inglês, já visitou meio mundo, vende para imensos países e é um dos maiores fabricantes portugueses de calçado. Cria a Kyaia em 1984 e a marca Fly London surge dez anos depois. Considera-se visionário?
Não. Considero-me um homem comum, mas que quer sempre subir na vida. Para se elevar o patamar, tem de haver força e vontade, caso contrário é impossível.    

Quantas empresas tem o grupo?
É constituído por cerca de doze empresas, diversificando-se por áreas. Temos a fabricação de sapatos em Guimarães, onde se localiza a sede, e em Paredes de Coura. Depois, temos as lojas. Em tempos, foram 80. Hoje, à volta de 15. Há meia dúzia de anos, tomei a decisão de começar a fechar as lojas, é um negócio que nos dá muito prejuízo. E, portanto, o número de lojas estacionará por aqui.  

E quantas pessoas emprega, neste momento?
Cerca de 400 trabalhadores. Não tenho um número certo porque é tudo muito volátil. Hoje estão, amanhã já não.

Falamos de uma faturação anual em vendas de...
Nós tivemos algumas alterações. 2014 e 2015 marcaram os momentos altos da Kyaia, a rondar uma faturação anual de 64 a 65 milhões de euros. Entretanto, começámos a baixar, e foi isso que me levou, entre 2021 e 2022, a dispensar um sócio que trabalhava comigo desde os seus 15 anos. Era ele o responsável pela parte comercial do grupo e, como originou declínio para a empresa, falei com ele. Disse-lhe: «Não foi para isto que te convidei, dei-te uma quota, mas não foi para sermos um grupo pequeno. Isto está a caminhar para nos tornarmos o grupo mais pequeno de calçado em Portugal. Vou arranjar pessoas que te substituam e tu segues a tua vida». E, pronto, acabou por seguir.

«Estamos (...) a tentar conquistar o mercado interno»

Qual é o volume de exportação? E qual o maior mercado?
Neste momento, continuamos entre os 85% a 95% de volume de exportação. Estamos também a tentar conquistar o mercado interno, onde chegamos a faturar três milhões de euros. Com a descida global da faturação do grupo, estamos num milhão e pouco.
O maior mercado é, e sempre foi, o inglês, que se bate com o americano e canadiano. Num ano corre melhor num; noutro ano corre melhor noutro, e assim sucessivamente. São mercados que dominam a progressão da Kyaia. Atualmente, vendemos para 45-50 países, mas no passado chegamos a atingir os 60 países. A nossa capacidade de produção também é limitada, temos de ser realistas, porque a falta de mão de obra condiciona significativamente a produção. Por exemplo, se não tivéssemos um grupo de 21 venezuelanos a trabalhar em Paredes de Coura, tínhamos a fábrica com problemas de produção.  

De que forma é que a inflação tem afetado o negócio?
Tem dificultado o diálogo entre o grupo e os clientes. Eles acham que o nosso produto é caro. Nós achamos que é barato. A verdade é que ou ganhamos para pagar aos nossos trabalhadores ou então não vale a pena ter a fábrica aberta. Depois, aparecem clientes mais compreensivos ou menos compreensivos. Não queremos explorar ninguém. Não sou apologista de aumentar as produções, mas sim de as melhorar. Temos de crescer, não por meio do aumento da produção, mas sim por acrescentarmos valor. Nem poluímos tanto o mundo, nem cansamos tanto os trabalhadores, acabando por valorizar mais o produto. Já por isso nos encontramos presentes em áreas como a inteligência artificial, o metaverso... 

A internacionalização atinge-se por meio da presença nas feiras e no digital?
O melhor caminho são as feiras. Estamos presentes em todas, nomeadamente a de Milão. A filosofia também já não é a mesma. Atualmente, dirigimo-nos para feiras mais pequenas, porque são mais económicas. Por outro lado, o digital é muito bonito, mas é fundamental que haja uma ligação pessoal. Em 2018/2019, o grupo lançou a plataforma de venda online Overcube, para a indústria portuguesa de calçado. A ideia era criar uma pequena Amazon em Portugal, que representasse a indústria nacional de calçado no mundo. Comecei o projeto com cerca de 30 informáticos, hoje restam quatro. Porquê? Meteu-se a pandemia, a guerra e a crise económica. Também ninguém quis acompanhar o projeto, nem a indústria, que o tomou por demasiado moderno; nem o próprio Estado, que olhava para aquilo como quem está a mirar uma vaca no meio de um campo de milho. A conjetura do tecido empresarial português também me deixou sozinho. Investi e, quando cheguei aos três milhões, parei. 

Como promove o pensamento crítico, a inovação e a sustentabilidade na sua organização?
Bem, os críticos não somos nós, são os nossos clientes. Eles é que compram. Procuramos sempre acompanhar os seus anseios e necessidades. Relativamente à sustentabilidade, encontramo-nos presentes em alguns projetos da indústria para a sustentabilidade. No domínio da inovação, fizemos uma aposta séria no metaverso. Porquê? Os clientes que, em 1994, faziam fila para comprar o nosso produto, hoje, já têm mais de 30/40 anos. Portanto, cansaram-se. Precisamos, pois, de arranjar nova clientela. O comércio enfrenta uma mudança muito grande. Aqui, em Portugal, tínhamos clientes de sapatarias que ganhavam imenso dinheiro, mas os próprios filhos quiseram prosseguir outras áreas e, portanto, esses clientes já quase não existem. Não posso vender sapatos, se mal existem sapatarias, então, a hipótese foi inserirmo-nos no metaverso, para atrair os miúdos que hoje têm 10/12 anos. Convencendo-os a jogar os nossos jogos, moldamo-los à marca, de forma a que, daqui a 20 anos, estejam afeiçoados à Fly London. É um investimento. Pode ser que daqui a uns anos comecem a comprar o nosso produto. 

Como se apresenta ao mundo a indústria nacional de calçado?
Como todas as indústrias, tem de lutar pela sua sobrevivência. E muito. Tecnicamente, a indústria nacional de calçado está bem desenvolvida, só não tem o valor acrescentado da marca. Por exemplo, se formos a Felgueiras, veem-se muitas indústrias paradas, porque só trabalham essencialmente para as grandes marcas, que por sinal estão em crise. Nós, Kyaia, como temos uma grande autonomia (cerca de 70%), estamos a trabalhar em pleno. Aliás, vamos agora de férias. Portanto, hoje, a indústria está bem preparada, o problema reside em não existir o valor acrescentado da marca. A indústria nacional não tem marcas.  

Costuma andar com calçado Fly London?
Temos de gostar da namorada para andarmos com ela (risos)! Sim, trago calçado Fly London.

«Não posso vender sapatos, se mal existem sapatarias»
O calçado é uma parte da sua vida, mas deixa ainda espaço para o turismo e os projetos de cariz social. Tem investido na Quinta Eira do Sol, em Guimarães, e em alojamentos locais. Porquê entrar no mundo do turismo e porquê na Cidade Berço?
Tomei a decisão de não crescer mais em termos industriais e expandir-me para a área da habitação. Tenho a Quinta Eira do Sol há mais de 20 anos. Quando a Kyaia estava no seu auge, fui convidado a viajar até ao Japão, para reunir com um bom cliente. Levaram-me ao local da sede do grupo e instalaram-me numa quinta que a fábrica tinha. Era um espaço que proporcionava ligações afetivas, mesmo num contexto de negócios. Gostei do que vi e, quando cheguei a Portugal, decidi investir numa quinta idêntica. Comecei a perceber que a quinta dava para atividades rentáveis, inclusive casamentos. Cheguei a viver lá dez anos, mas convencer a minha mulher a ir para lá viver foi difícil (risos). Então, escolhi implementar o projeto. E é em Guimarães, sim, porque... já se viu uma namorada a viver a 30 km do companheiro? A minha cidade é a minha cidade. Tudo o que possa fazer, faço na minha terra. 

O que falta explorar no domínio do turismo em Portugal?
Não sou um especialista em turismo, sou um resistente. Mas posso dizer que, em vez de termos feito do Algarve uma Feira da Ladra, devíamos ter feito dele coisas que se veem no estrangeiro, com valor. Para a Feira da Ladra basta a de Lisboa. 

É o criador da Fundação Oliveira Frederico, que lhe é muito especial. Quer dar-nos a conhecer o conceito?

Enquanto somos vivos, temos de ter estes princípios. Achei que o meu filho, que já não está entre nós, devia ser falado mesmo depois da minha morte. Resolvi, por isso, criar a fundação. Tenho uma filha a quem não falta nada, mas que não tem saúde para dar continuidade ao meu papel e, portanto, a fundação zelará pelo património que criei, depois de eu e a minha mulher partirmos. A missão da Oliveira Frederico começa com o meu testemunho. Quando tinha 10 anos, fiz a 4.ª classe, em Donim, e recebi um prémio de melhor aluno. Houve um lanche muito bonito, lembro-me bem. Quem promove esse prémio é a Martins Sarmento e, de facto, o melhor aluno do concelho vem à cidade, no fim do ano. Eu vim, tal como esses bons alunos. Entretanto, os anos passaram. Na altura em que montei a fábrica, encontrei o professor Santos Simões, que me falou do prémio que no passado tinha ganhado. Acabou por me oferecer um livro com o meu nome. Foi aí que me passou pela cabeça criar a fundação. O meu filho já tinha falecido e decidi criar o projeto em nome do Frederico, instituindo um prémio para os melhores alunos. Então, todos os anos, o melhor aluno de cada uma de três freguesias vem receber o prémio. Este ano já são premiados com mil euros. São alunos que ficarão sempre na nossa alçada.  

«Fizemos uma aposta séria no metaverso»

É hoje uma pessoa realizada ou restam sonhos por concretizar?
Ainda quero fazer mais. Ambiciono tornar a Fly London a marca número um em Portugal. Ela está, de facto, a crescer. 

Sendo um homem tão ativo, como viverá o período de reforma?

Não quero ter reforma, vou continuar a trabalhar até morrer (risos)!  

«Don’t Walk, Fly» é o lema da sua vida?
É. Esse é o meu sonho.
Joana Rebelo
T. Joana Rebelo
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