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Álvaro Siza Vieira

"Que as novas gerações lutem por manter o significado do arquiteto"

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Fez do traço a linha-mestra da sua vida, que o guiou a uma carreira de notoriedade nacional e internacional. Do prémio Pritzker ao Leão de Ouro, da habitação social aos museus e centros de arte, o trabalho de Álvaro Siza Vieira continua a ser referência para as novas gerações de arquitetos. Aos 91 anos, o dia a dia continua a ser marcado pelo ofício, que diz ser fundamental para não envelhecer ainda mais. É no seu gabinete que gatafunha a inspiração que absorve da movimentação da cidade, continuando diariamente a projetar um legado único. 

Fale-nos um pouco do seu dia a dia… É aqui, no seu gabinete, que passa a maior parte do tempo?
É, porque não posso viajar, tenho problemas de coluna. Senão, viajaria, até porque tenho a maior parte do trabalho na China e na Coreia do Sul. Mas agora é casa-escritório-casa.

Mesmo não viajando atualmente, onde é que vai buscar inspiração?
A inspiração anda no ar, anda nas cidades... A inspiração não vem de dentro, vem de fora. Entra pelos olhos e sobe à cabeça, e, portanto, não faltam estímulos, referências para as ideias virem e a inovação acontecer. E não falta a história, tão rica em Portugal. E, depois, a movimentação das cidades, multiplicada, porque hoje está tudo ligado.

E vir aqui, continuar a trabalhar e a fazer aquilo de que gosta, contribui para manter a sua jovialidade? Um artista nunca envelhece?
Não, tinha de ser… Se não trabalhasse, como qualquer mortal, o único trabalho passaria a ser o envelhecimento mental e físico, que é o que se faz a partir de uma certa idade. Mas trabalhar implica pensar, assumir responsabilidades, o que é fundamental, quanto mais não seja para não envelhecer ainda mais. 

Tendo vivido tantas épocas diferentes, inclusive ao nível da arquitetura, como é que a pensa hoje tendo ela desafios tão concretos? Por exemplo, a questão da sustentabilidade e até mesmo um novo conceito espacial da casa… Como é que se pensa hoje a arquitetura?
A noção de sustentabilidade, de outra forma, sempre existiu. Uma casa é o abrigo, o lugar de repouso e de desenvolvimento da família desde há séculos. Agora há novas exigências, no fundo, de um melhor modo de vida, mas, por outro lado, também há maiores contras. O incremento dessa ideia da presença da sustentabilidade em todos o debates também está muito ligado à insustentabilidade. Também há mais exigentes problemas, porque há mais perversos descuidos, chamemos-lhe assim.

Considera que há uma ideia generalizada de que os arquitetos só trabalham para os mais ricos?
É uma das distorções inacreditáveis que fazem parte do coro de campanha contra os arquitetos, o que em princípio significa também contra a arquitetura. Os arquitetos assumiram trabalhar para o grande número. Nos anos 20 e 30, as obras mais notáveis de arquitetura, dos mais celebrados arquitetos, dizem respeito à habitação social. Essa é a herança recebida desses anos. A ideia de que os arquitetos só trabalham para os ricos é uma invenção, uma distorção lamentável, que só tem que ver com outros interesses, mas não vamos por aí.

Já trabalhou por todo o mundo… Há alguma cidade ou país que o fascine particularmente em termos de arquitetura?
Em certa medida, todos os países têm alguma coisa de particularmente interessante. Gosto de todas as cidades e de todos os países, uns por uma razão, outros por outra. Depois, claro, há os cúmulos de beleza, não é geral, embora esteja sempre presente a personalidade do povo. Se formos considerar Paris, Veneza, Nápoles, Nova Iorque, aí há uma particular intensidade, uma particular autenticidade...Pode incluir muita coisa falsa, mas o que permanece é a autenticidade. Quando, em Nova Iorque, os arranha-céus crescem como plantas, isso não é capricho dos arquitetos, são concessões económicas, sociais. Agora, quando se põe, como se pôs aqui ao pé da ponte [Arrábida], uma torre que é mais alta do que a ponte ou do que um monumento nacional, o resultado é mau. Não é dizer que é feio, é desadequado, é falso, não tem autenticidade.

Temos em Portugal cada vez mais estrangeiros com muito dinheiro que investem cá. Acha que Portugal tem um potencial de luxo?
Há luxos como também há desigualdades e são muito patentes. Portugal é bastante sossegado. Mas tudo o que existe nos outros países existe aqui também. Também haverá qualquer coisa de interesse por razões de um certo subdesenvolvimento em relação a outros países. Mas eu acho que muitos vêm por encontrarem mais tranquilidade, já começam a não vir pelo custo de vida. A razão principal que eu vejo é essa. O clima, a beleza natural e construída, a presença da história na paisagem e talvez um pouco, também, as grandes diferenças no território de um país tão pequeno.

Também trabalha muito com o mercado oriental. Quais são os desafios de trabalhar para esses países?
Eu quase só trabalho para o mercado oriental, em Portugal tenho muito pouco trabalho. A experiência que tenho é na China e na Coreia do Sul. Excelentes condições de trabalho. E a razão número um é clientes que querem qualidade, que tratam muito bem os arquitetos, que não dizem que são uns senhores caprichosos e que dão condições de trabalho boas. Ali sente-se uma vontade de fazer com qualidade. Aqui é uma coisa rara.

Considera-se um homem do Porto? Valoriza as suas raízes?
Eu gosto de viver no Porto, além de ter os amigos, etc., gosto até do ponto de vista do clima. O Porto também é uma cidade com um suporte físico belíssimo. É o rio… O Porto existe porque existe o rio. Tem condições geográficas e climáticas ótimas, e, como tal, também é uma das razões porque tem historicamente muito boa arquitetura. Estou bem aqui… Agora, tenho pena de não poder viajar. Era muito bom sair, ver outras coisas… Não se pode ter tudo.

Sente-se devidamente reconhecido em Portugal ou falta algum reconhecimento?
Às vezes, até faz um certo incómodo… Tenho muitas entrevistas, por exemplo(risos)… Para umas pessoas há reconhecimento, para outras não… Como sempre. Agora, o que há, e esse é já o aspeto geral, é, realmente, uma relação com o que são os arquitetos como profissionais muito dura. Não me estou a queixar pessoalmente, nem vejo nada de pessoal nisso. Se falar com outros arquitetos vê que não é uma lamúria de mimalhão, mas que realmente as condições são péssimas e que grande parte das imposições vêm da Comunidade Europeia, e, portanto, repetem-se em todos os países, exceto na Suíça, que é o único país onde se pode trabalhar tranquilamente em arquitetura. Aqui, por exemplo, acabou o direito de autor. Um arquiteto já não tem os direitos de autor que tinha. Isso é tremendo. Realmente sucede essa debilidade na exigência de qualidade, é patente e começa a ser patente na paisagem.


«Tenho pena de não poder viajar. Era muito bom sair, ver outras coisas…»


Ter sido premiado pelo prémio Pritzker foi sempre positivo ou acha que em algum momento o prejudicou profissionalmente?
Fiquei muito satisfeito, gostei muito. E também me abriu portas para outros países. Agora, mais do que isso não, e também tem os seus incovenientes. Há um certo prazer em chumbar os projetos de alguém que os jornais noticiaram que ganhou o prémio tal e o prémio tal… Isso remete para os últimos versos do Camões, que se referem à inveja, que ele sentiu bem. Mas pronto, isso faz parte da natureza humana.

Em tempos partilhou com a Villas&Golfe que gostava de ter sido escultor. Hoje em dia consegue dizer que se não tivesse seguido arquitetura seria na mesma escultor ou há outra profissão que gostaria de ter exercido?
Com os meus cinco anos, quis ser muitas coisas. Quis ser bombeiro, como todas as crianças. Em determinada altura, quis ser cantor de ópera, porque o meu pai cantava muito bem, tinha uma bela voz de barítono, mas nunca foi profissional. Era engenheiro, mas nas festas familiares lá cantava para os outros palhaços ou coisa assim... Portanto, um miúdo é influenciado por essas coisas. Quis ser jogador de futebol, mas isso faz parte de todas as crianças. Depois há fatores exteriores que levam a uma determinada escolha. Quando se é mais crescido, em princípio, muda-se. Felizmente, senão, os fogos estavam mais desprotegidos…

Já fez praticamente tudo…Quais são os seus próximos desafios? Há alguma coisa que ainda gostasse de concretizar?
Nunca ninguém fez praticamente tudo…Gostava de concretizar o que há oportunidade, me interessa e necessito, não tenho assim nada em especial. Tenho tido oportunidades e aproveito-as para o bem ou para o mal, como consigo. O primeiro projeto que me lembro de fazer, de alguém me pedir para fazer o desenho, foi um galinheiro. E zanguei-me logo com o cliente. Seguramente teve as suas razões, porque eu queria fazer, construir...Portanto, concentrei tudo em fazer um galinheiro, era um galinheiro especial. Se calhar ainda existe, era aqui no Bairro Gomes da Costa. Era cilíndrico. Conseguiria ser arte ou não conseguiria ser… Ou era só um disparate, não me lembro.

E já desenhou ou fez alguma casa para si próprio?
Só fiz uma, em Évora. A casa onde vivo é feita por outro arquiteto, um bom amigo, grande arquiteto. Eu acho que não deveria ser muito bom cliente. É difícil, porque fazer a casa para o próprio é uma coisa muito limitada, obsessiva, tende a faltar o diálogo que é uma componente essencial para fazer seja o que for.

Como é que pensou a casa de Évora?
A casa de Évora foi numa altura em que eu ia praticamente todas as semanas a Évora, tinha lá um trabalho grande, que era praticamente uma parte da cidade, largos hectares de habitação social, e que durou muitos anos. Trabalhei em Évora cerca de doze anos e estava cansado de hotéis ou de ficar em casa de algum amigo. Portanto, em determinada altura, no projeto que eu estava a fazer, havia uma parte de cooperativas e outra parte de iniciativa privada, e era barato, comprei um lotezito lá e fiz um T2. Aproveitei para fazer determinadas coisas que não conseguia convencer o cliente a fazer. Portanto, coloquei aí essas coisas que eu achava que eram muito vantajosas e que não conseguia pôr no projeto. E depois convidei as pessoas para verem e elas até gostaram. Era uma coisa muito simples, era pôr os canos da água e toda a canalização à vista, porque a construção era muito económica.

Como é que ocupa os seus tempos livres para além da arquitetura? Ouve música, lê…?
Música, muito… Chego a casa e ligo o aparelho, não custa nada. Televisão também vejo bastante.

Já desenhou arte religiosa. É um homem de fé? Acredita em Deus?
Bem, nunca o vi, é difícil de imaginar… O que acredito é que há correntes de solidariedade, pouco frequentes hoje em dia, com uma atmosfera de fraternidade que tem que ver com pensamentos que eu ouço, a propósito da bondade de Deus. Agora, nunca o vi… Não consigo imaginar o Deus com as suas barbas e tal… A religiosidade é uma coisa mais vasta, não tem que ver só com o Deus com as barbas.

Se voltasse atrás, havia alguma coisa na sua vida que mudaria?
Acho problemático porque podia mudar para pior… Basta como está.

Sendo um arquiteto admirado por tantos jovens, o que diria a esta nova geração de arquitetos?
Que lutem pela possibilidade de manter o que significa o arquiteto para a construção de uma cidade, para o ordenamento do território, para a sustentabilidade. Têm de lutar por isso. A primeira coisa é a conquista das condições de trabalho e do reconhecimento do papel e da importância do arquiteto na equipa que hoje é responsável por um projeto. O segredo da boa arquitetura está na formação, na existência de uma equipa que se entende, que debate livremente e sem reservas, que chega a consensos em relação ao que deve fazer.

Como é que se define numa palavra?
A mim? Não há utilidade nenhuma em definir-me, porque sou definido, eventualmente, se acaso o sou mesmo e isso acontece, por muitas pessoas. Umas de forma favorável, outras de forma desfavorável, isso é o que acontece a toda a gente. Mas, solidariedade, provavelmente.


«O primeiro projeto que me lembro de fazer foi um galinheiro. Conseguiria ser arte ou era só um disparate.»

Carla Martins
T. Carla Martins
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