Consegue olhar para os
livros que já escreveu e escolher um predilecto?
Concretamente,
no que diz respeito à qualidade literária, estou sempre mais ligado àquilo que
fiz recentemente. Mas depois posso preferir o tempo de escrita de um
determinado texto, posso entender que fui mais feliz, ou que havia um encanto,
ou que se produziu um encanto, mais ou menos, irrepetível, numa ou noutra
altura. A escrita do meu primeiro romance foi um vértice na minha vida, no
sentido em que me fez mudar de caminho e me fez entender inclusive sobre quem
sou e sobre quem sou enquanto autor, mas sobre o que eu sou enquanto pessoa,
por isso, a escrita do «O Nosso Reino» foi um tempo de entrada num certo mundo
de Alice, neste caso um mundo do Valter.
O que é preciso para se
sentir pronto para começar a escrever?
Normalmente
o livro começa quando uma ideia insistente, até mais ou menos urgente, na minha
cabeça encontra uma expressão estética. Quando uma determinada ideia se coloca diante
de mim como literária. Eventualmente, eu tenho a intenção de escrever sobre
muitos assuntos. Há muita coisa que me preocupa e sobre a qual eu gostaria de
escrever. Mas começo a escrever a partir o momento em que uma dessas ideias se
coloca diante de mim como uma estética definida, como se ela própria
conseguisse conquistar a sua beleza. Até gostaria de decidir com maior isenção
o livro que vou escrever a seguir, pensando «interessa-me escrever sobre este
assunto, neste momento», mas, normalmente, sou sempre seduzido pela capacidade
de um certo embelezamento, de um certo esplendor expressivo, discursivo, que os
assuntos conseguem trazer ao de cima.
E é exigente. É alguém
que, se não estiver satisfeito, começa de novo.
Exactamente.
Sou cada vez mais exigente. Cada vez mais horrivelmente exigente. No sentido em
que desenvolvo manias e maneiras mais apertadas, mais sufocantes, mais
obstinadas, para escrever. Escrevo sempre mais ao pé de um nervosismo que talvez
seja crescente, que não era tanto assim nos primeiros livros. Mas a verdade é
que estou convencido de que chego a livros melhores (risos).
O que sente na pele
quando percebe que grande parte das pessoas gostam muito dos seus livros?
É
muito gratificante. Fico um pouco incrédulo, no sentido em que a vida é uma
precipitação. Por mais que nos empenhemos em alguma coisa, a sensação de que o
tempo nos desaparece é muito violenta, muito forte. Por isso, é muito fácil – ao
mesmo tempo que tenho a consciência de que escrevi certos romances, e por isso,
tenho a memória do trabalho que cada um deles implicou – parecer-me que ainda
sou um miúdo, num certo sentido. Fico muito estupefacto com a minha idade e por
isso o reconhecimento custa-me a crer, nesse sentido em que muitas coisas em
mim ainda são as coisas do miúdo de que me lembro, por isso, fico muito grato.
Acho que verdadeiramente aquilo que me motiva é saber que há algumas pessoas
que reconhecem, sobretudo, a honestidade dos meus livros. De que são livros
verdadeiramente empenhados em serem boa literatura.
Um dos seus fãs era Saramago.
Vê isso mais como uma bênção ou uma maldição?
É
uma profunda bênção e foi muito generosa da sua parte, ao mesmo tempo foi uma
espécie de conferência de responsabilidade. Ou seja, ele entregou-me a responsabilidade
de estar à altura daquilo que disse. O Saramago, de alguma forma, solicita-me
essa espécie de intensificação das minhas capacidades, independentemente de
depois as pessoas gostarem ou não do resultado. O que eu acho que retiro desses
elogios que me fazem é um bocado esse compromisso de seriedade.
Parece ter algum receio
de falhar… Escreve porquê e para quem?
Eu
escrevo sempre pelo mesmo motivo: porque me sinto incomodado e incompleto.
Quando aludo ao mundo de Alice tem muito que ver com isto de entrarmos numa
plenitude que não é possível nas evidências mais imediatas. Sempre vivi um
pouco angustiado com o mundo tal qual ele é e sempre sonhei com um mundo melhor
e com gente melhor e com ser melhor também. Por isso, creio que escrevo por
causa disso, para ser melhor, para conceber uma maturação do pensamento e da
humanidade.
«Acho
que verdadeiramente aquilo que me motiva é saber que há algumas pessoas que
reconhecem, sobretudo, a honestidade dos meus livros»